[um conto de João Klimeck]
Eu estava na lanchonete fast-food na esquina de casa quando lembrei de você. De como fazia sempre o mesmo pedido por aqui. Do mesmo pão, de 15 cm que só comia pela metade, até o mesmo molho. Regina, a vida é como um pedido de sanduíche, a gente vai colocando gente que nem coloca alface, pepino e picles. Tínhamos a mesma idade e a bibliotecária do campus já tinha comentado como nos parecíamos. Depois que tranquei o curso no primeiro período, não tive mais notícias. Devo ter me tornado uma rúcula murcha pra ti.
Olhando pra baixo percebi, contrastante ao amarelo encardido do chão, um ponto vermelho. O que é o que é, um pontinho vermelho no Subway da esquina? Provavelmente ketchup. Ou um cubículo de tomate. Comi pensando no gosto ácido do vinagre e do pontinho. Terminei e limpei os lábios com o último guardanapo solto e dobrado pela metade no dispenser. Carla, sentia falta da dobra que minha língua fazia quando chamava teu nome. Nos conhecemos por tão pouco tempo que acabei me dando a liberdade de escrever seu diário por você.
Nunca brinquei na vida. Os móveis de casa eram altos demais para escalar e quando chovia eu não podia sair do meu quarto. Acabava me divertindo com o que podia. Contava quantos buracos a renda do meu vestido preferido tinha e quantas vezes não me deixavam ir para o parque atravessando a rua.
Quando coloquei aparelho, comecei a contar quantas aftas ele deixava na minha gengiva. Criei uma obsessão pelo espelho do banheiro. Em uma semana contava os dentes, em outra os tártaros e as linhas do céu da boca. Abria a boca e tentava engolir o reflexo enquanto marcava os números mentalmente.
Acabei me metendo em contabilidade. Uma obviedade que foi um pouco de acaso. No dia de fazer as inscrições para o vestibular, não queria me decidir entre as opções e acabei me inscrevendo no primeiro curso da lista que começava com a letra do meu nome. Carla. Carla de contábeis.
O sabor do pontinho vermelho no chão me fez lembrar do molho de mostarda e mel que não existe mais. Tinham interrompido a produção no fast-food. Foi na última vez que viemos aqui juntas que você descobriu. Lembro da sua reação meio exagerada e de ter saído correndo para o banheiro. Você abriu a boca em frente ao espelho como fazia quando era criança e chorou. Eu só via o seu tênis pelo vão da porta, mas sabia que pelo reflexo do espelho a pinça retirava primeiro a amígdala esquerda. Cuspiu fora, com um caminho de sangue escorrendo pelo canto da boca. Depois, saiu a direita, mais molenga, com a mesma viscosidade. Limpou o rosto com um guardanapo barato – era o que tinha no bolso, aquele pedaço de papel plastificado que mais espalha sujeira do que qualquer outra coisa. No banheiro meio sujo do seu restaurante favorito. As amígdalas, agora em cima da pia, respiravam o ar puro longe das cavidades da garganta, em um vidro de picles, boiando no vinagre entre as bolinhas de mostarda.
Você chegou em casa e escreveu com pesar.
Para indicar as coordenadas aos curiosos: na prateleira dos fundos do estabelecimento, ao lado de um galão de óleo e de um porta retrato com o funcionário do mês.
* Este conto foi produzido durante o Laboratório de Contos, ministrado em 2023 pelas professoras Julie Fank e Luci Collin.