Escola de Escrita

Narciso

[um conto de João Pedro Minto Russo]

Ninguém sabe de onde ele veio. Era como se sempre tivesse estado ali. Seu domínio era a curva do lago. Não falhava em sua patrulha por um dia sequer. Era altivo e preciso, seus movimentos calculados para o menor desperdício.

Assim o chamamos pelo hábito de se admirar no reflexo das superfícies espelhadas dos objetos. Mais até do que no lago, diga-se, ao contrário de seu patronímico. A cabeça ia e voltava, para lá e para cá, colocando o rosto delgado sob minucioso escrutínio. Gostava do que via. Claro que gostava, sabia muito bem de si próprio.

As câmeras eram bem-vindas, desde que com a atitude correta. Não tolerava risinhos ou mesmo que lhe dirigissem a palavra. Aceitava somente a contemplação calcada na reverência. Perfazia-se em seu desfile rocambolesco com desinteresse fingido, como se fosse um dia qualquer. Optava por não aceitar oferendas de comida. Sabia que seus gostos jamais seriam atendidos com o requinte apropriado.

Aquele que lhe cruzasse o caminho devia prestar deferência se não quisesse ser repelido. Não foi apenas uma ou duas vezes que o vimos aterrorizar até os mais ferozes cães. Dentes e rosnados nada significavam perante a certeza de sua superioridade. Crianças e suas mãozinhas curiosas rapidamente se tornavam criaturas em fuga. Poucas coisas neste mundo e em outros mundos têm a imponência e o poder de um par de asas bem abertas e uma bicada bem dada.

Uma pena, porém, que o pedágio só cabia aos pedestres. Num verdadeiro dia qualquer, sem câmeras e curiosos, foi atropelado por uma bicicleta. Não deixou procuradores para seu patrimônio imaterial.


* Este conto foi produzido a partir de exercícios do Laboratório de Contos, ministrado em 2023 pelas professoras Julie Fank e Luci Collin.