Escola de Escrita

Os trinta de Bellatin

[um conto de Daniélle Carazzai]

Confesso que já me acostumei e até gosto da companhia. Não sei quanto tempo vai durar. Acabei me afeiçoando a essas carnes tom carmim que me olham, de dentro do pote de vidro, como se quisessem (ainda) me devorar. É uma sensação boa ser desejado. Deve ser por isso que se tem cães. Os meus foram chegando da rua e ficaram. Não são animais enfurecidos como os de Bellatin, que dá comandos em italiano – dizem que veio atrás de um adestrador e fixou moradia longe do melhor ossobuco do mundo.

As amígdalas ainda estão frescas e gemem de vez em quando. Baixinho. Nem todo mundo percebe esse tipo de som mínimo, mas eu e os trinta belga malinois de Bellatin, sim. Dá para saber disso porque eles levantam as orelhas e olham para cá no momento exato. Parece não estar acontecendo nada, mas eu sei do que se trata. É um estarrecimento que compartilhamos.

O condomínio de casas classe paupérrima onde vivo, por completa falta de ter onde cair morto, fica em uma rua sem saída com um pequeno balão no final – soube que existe uma palavra francesa para identificar essa incompletude, mas não falo francês e parece que a pronúncia denota certa obscenidade. Poderia ter sido um lugar familiar não fosse o cheiro de merda que alcança o bairro vizinho em dias de muita chuva. Isso se dá especialmente porque não há ninguém ali com menos de vinte. Vinte cães. E vinte é o máximo. Trinta só o Bellatin – que causou certa compaixão por ser paraplégico e ter idade avançada.

Não sei se os outros moradores daqui estão velhos e surdos ou se acostumaram de tal forma com os latidos intermitentes que seus tímpanos mudaram de frequência. Não há algodão, tampão de ouvido ou casa inteira fechada que dê conta desse ruído que chega a vibrar pálpebras. Minhas unhas carcomidas e a queda de cabelo atestam meu estado precário. Os boletos acumulados à mesinha ao lado da porta são indício de que não entreguei trabalho algum nos últimos meses para poder quitá-los.

A escolha da medida foi cautelar, ainda que arriscada. Não era mais possível suportar a tortura sonora. Já existiam tantas dores a me infernizar que estava sem espaço para outros atravessamentos. Li em algum lugar ou vi em algum filme, não posso precisar, que era possível mudar o tom de voz dos cães retirando suas amígdalas. Não ousaria tirar as cordas vocais. Bellatin é um velho vingativo, sem escrúpulos e ama seus cães.

A dose suficiente de veneno em pedaços de pão me deu o tempo preciso. Eu mesmo fiz os cortes com faca de cozinha, depois de conferir a imobilidade dos autores de latidos tão oxítonos quanto agulha fina penetrando os olhos. A super bonder na geladeira, aparentemente, deu conta da costura – coisa que não sei fazer. Lavei a calçada ensanguentada antes que aqueles insanos acordassem ou que Bellatin retornasse da curta viagem semanal que faz para comprar ração orgânica vegetariana no município vizinho – e da qual ele também se alimenta.

O problema é que, ao se recuperarem da malfeita extirpação de amígdalas, o latido ficou ainda pior. Barítonos tomaram os corpos daqueles cães, só pode! Matá-los estava fora decogitação. A alternativa seguinte foi menos sofisticada – e constatei imediatamente minha falta de inteligência, causada possivelmente pela falta de alimento na infância. Deveriater pensado nisso antes de sujar as mãos. A consciência, ao contrário, estava há muito comprometida. Levei três dias isolando a parte interna da casa com tábuas, caixas de ovos, lona, tudo o que fui encontrando em caçambas pela cidade.

A escuridão e o silêncio surdo se instalaram de modo definitivo. Pude, enfim, descansar – não fosse aquele pequeno ruído quase branco. Um som que vive. Ínfimo, contido no pote de vidro transparente que habita a estante da pequena sala onde faço as refeições.

* Este conto foi produzido a partir de um exercício no Laboratório de Contos, ministrado em 2023 pelas professoras Julie Fank e Luci Collin.