Escola de Escrita

Queria mais

Queria mais

[um conto de Eduarda Miri Ortiz]

A planta estava torta. Ela arrumou. Sentou no sofá da sala, na ponta, assim não desarrumaria as almofadas. Levantou, sentiu o ar ao abria a janela da sacada. Abriu a boca, queria engoli-lo, se inclinou para frente. Um pouco mais. Sentia o desejo de aspirar a vida lá fora. Sentia o calor abafado da casa vazia e das grossas cortinas fechadas. Pensou em comprar uma planta. Queria mais. Talvez uma viagem para a Amazônia. Não, não seria o bastante. Inclinou-se mais um pouco. Queria era saber a língua dos pássaros e a língua do morador de rua que só sabia repetir “Um real, dois real”. Queria saber pedir exatamente aquilo que precisava. Tentou escolher um presente de natal dias antes. Pensou num livro de mesa ontem e hoje num quadro para o lavabo. Não precisava de nada. A viagem para a Amazônia! Poderia pedir isso. Ou um safári no Quênia. Lembrou do hotel com janelas abertas e as cabeças das girafas entrando. Queria mais. Queria ser uma girafa. Queria fungar o café da manhã de um hóspede sorridente e encantado ao ver sua comida lambida, e, então, voltar para a selva. Apoiou as mãos na janela. Queria mais. Uma casa na praia talvez. O mar batendo quase na janela, ou uma casa de campo com vista para as montanhas na mesa do café da manhã. QUERIA UM APARTAMENTO NOVO! Esse era pequeno. Quando comprou já sabia que não era grande o suficiente. O ar não circulava. Os papéis de parede o fizeram ainda menor. Escolheu cores escuras, mas agora tomava gosto pelas claras. Esse imóvel já não valia de nada. Queria tentar de novo. Uma rajada de vento a fez fechar os olhos. Abriu-os no verde das árvores que até então só tinha notado em conjunto e não uma a uma. Nem que quisesse conseguiria olhar para trás agora. Não se lembrava de ter escolhido nada, não se lembrava de quem era no dia que escolheu um lavabo inteiro dourado, já que agora o detestava. Não poderia olhar para trás. Atrás não tinha nada. Tudo atrás foi sem querer. Sentia uma espécie de vertigem ao avesso que lhe causava tontura para dentro da janela. Se inclinou mais um pouco. Queria mais! Mas mais o quê? Não sabia. Na vida, foi um camaleão que esqueceu a própria cor já na infância. Se um dia fosse autêntica, nem se daria conta. Queria mais e, por algum motivo, aquelas árvores, aqueles pássaros, aquele moço pedindo dinheiro na rua a impediam de lembrar de todas as justificativas que já se deu para explicar o porquê do pouco que era. Talvez a história a redimisse em algum momento, com linhas que a descreveriam como alguém que foi tudo que poderia ser dada a época em que viveu. Talvez não, não queria correr nenhum risco. Nunca quis. unca fora alfabetizada a respeito dos abismos da vida. Só planícies compunham seu caminho. Ademais, agora, essas possíveis linhas redentoras não valiam nada. Se inclinou mais um pouco. Na ponta dos pés. A cintura no parapeito da janela. Mais. Os pés suspensos. Mais! Outra rajada de vento. Olhos fechados. MAIS! Finalmente queria algo, e queria mais. Bastou o barulho da campainha. A ventania virou brisa. Com passos apressados, chegou para abrir a porta. O chaveiro vinha instalar a tetra-chave. Sentiu a satisfação de bem proteger a casa que voltou a ser sua sem que nem percebesse. Já de fora, o chaveiro estava encantado com o que via. Demorou a entrar, teve de criar coragem. Dentro da casa, estendeu um pedaço de cobertor para que as ferramentas não marcassem o novíssimo piso. Como valorizava trabalhadores cuidadosos, na certa daria uma boa gorjeta a ele. Já fazia planos para a próxima reforma do lavabo. Queria mais é que tudo ficasse perfeito.



* Este conto foi produzido durante o curso Desembaraço do texto, ministrado pela professora Julie Fank em 2023.