[um conto de Paulo Eduardo Gonçalves]
quinta-feira
Não há esperança para minha literatura. Nas aulas de escrita, as fêmeas secundam umas às outras como amazonas em uma falange, com o firme propósito de não consumir qualquer produto de criação masculina. Exceto, segundo uma delas, o legítimo couro de homem de que é feito suas botas. Pelo acabamento, julgo poder afirmar com algum grau de certeza tratar-se de retalhos de fimose.
sexta-feira
Na academia, a recepcionista enxerga algum tipo de sexismo em minha recusa em levar para casa as amostras grátis de um novo xampu feminino pousadas sobre o balcão. Para não desagradá-la, carrego comigo um punhado de sachês coloridos, a despeito da portentosa calva que já há duas décadas orna meu couro cabeludo.
sábado
Aproveito o feriado para visitar meus pais em minha cidade natal. A funcionária do guichê parece me tratar com rispidez desnecessária ao vender-me a passagem de ônibus.
domingo
Dia tranquilo em família. Noto que a cadela de um de meus irmãos, antes tão amável, agora rosna para mim. Os outros dois cães da casa continuam com seu comportamento amistoso.
segunda-feira
Visito um casal de amigos. Ao tomar o ônibus, todas as passageiras, a cobradora e a motorista, me olham com ar de reprovação, como que amaldiçoando, senão meu nascimento, então o deus que brindou-me com um pinto entre as pernas.
terça-feira
Minha mãe recebe a visita da madrinha de meu irmão mais novo. Sempre nos demos muito bem, porém, aparentemente, contaminada pelo espírito do tempo, ela me trata com frieza.
quarta-feira
Minha mãe foi ao mercado enquanto eu visitava parentes. Envio-lha uma mensagem de texto solicitando que traga-mo uns poucos itens dos quais necessito. Ela retorna sem eles, afirmando que não leu a mensagem. Se nem minha própria mãe se dá ao trabalho de ler o que escrevo, torna-se-me inegável a certeza de que realmente não há futuro para minha literatura…
quinta-feira
Retorno à casa. Sem xampu ou sabonete, uso as amostras grátis que peguei na academia semana passada para o banho. No trabalho, o dia torna-se estranho: a recepcionista do primeiro andar, assumidamente gay, passa-me uma cantada deverasmente explícita; a contabilista da sala ao lado elogia o estilo das roupas surradas que uso em serviço; a estagiária do setor contíguo acompanha-me ao banheiro e tagarela, segurando a porta enquanto eu mijo. Só há uma explicação: os feromônios contidos na fórmula das amostras grátis embrenharam-se nos fartos pêlos de meu peito, confundindo seus primitivos instintos femininos, e fazendo-as tomarem-me por um membro da própria espécie. Pode existir, portanto, uma luz no fim do túnel quente, liso e úmido no qual meti minha literatura. E as aulas de escrita de hoje à noite me servirão de baliza. Se ao menos uma das amazonas amolecer o coração calejado por tantos anos de atrito com a rigidez do patriarcado, esboçando o mais leve sinal contentamento; haverá, sim!, esperança para minha literatura.
* Este conto foi produzido como atividade do curso Escrita Criativa e Outras Artes, ministrado por Julie Fank em 2019.