Escola de Escrita

Uma tarde na Toscana

[um conto de Layla Gabriel de Oliveira]

Uma tarde na toscana 

Layla Gabriel de Oliveira 

Quando Roberto se mudou eu arranquei a persiana da sala e deixei sem cortinas. A persiana estava quebrada já fazia não sei quanto tempo e não abria mais, o que deixava a sala permanentemente no escuro. Agora, quando o sol entra pela janela lá pelas duas da tarde, eu deito no sofá com as pernas esticadas e descobertas, e fico ali até o sol começar a doer na pele ou até o mundo girar e ele parar de bater ali. 

Quando faço isso, geralmente estou lendo um livro ou assistindo TV, e às vezes eu penso se Roberto está pensando em mim. Gostaria que sim, mas a verdade é que ele deve estar pensando na Kendra. Deve estar levando a Kendra em todos os lugares onde já estivemos, deve estar dando para a Kendra os mesmos presentes de aniversário que deu para mim, porque o Roberto é cara legal mas ele também é um cara sem muita criatividade. Esse é um dos motivos pelo qual eu terminei com ele. Foi isso que eu disse pra ele quando pedi o divórcio, eu disse: você é um cara sem criatividade. 

Outro motivo pelo qual terminei com o Roberto é porque ele decidiu comprar uma motocicleta, e foi esse mesmo o nome que ele usou, mo-to-ci-cle-ta. Aí eu disse chega, eu não vou ser o tipo de mulher que anda numa motocicleta. E não parei por aí. Disse que estava cansada de ser só um acessório, que tinha vontades e desejos que ele não tinha sido capaz de suprir, e que eu estava pronta pra viver a minha vida sem ele. No calor do momento também adicionei que compraria uma flauta, só pra ele entender o tamanho da mudança de vida que eu faria sem ele. Essa última parte foi mentira, porque não comprei a flauta, e sim um maltês mini. Batizei ele de Pedro e não sei se foi de propósito que escolhi um nome de gente, mas quando eu falo do Pedro as pessoas acham que ele é um homem e não um cachorro. E acham que esse homem, chamado Pedro, mora comigo, e que ele ocupou o lugar vazio de Roberto. A vizinha cometeu esse equívoco e eu não a corrigi – geralmente não corrijo, a não ser que seja incontornável. Não corrigi-la foi um baita erro, porque agora ela acha que eu vivo com alguém, e não vai me avisar quando ouvir barulhos estranhos dentro da minha casa, o que me deixa bem vulnerável. 

Outra pessoa que acha que o Pedro é um homem é a minha amiga Lídia. Nos encontramos no salão – ela chegando e eu de saída – e ela pediu pra eu ficar mais um pouco pra me contar os pormenores da sua última viagem à Bahia. Eu disse não posso, estou com horário, tenho que ir buscar o Pedro – que me esperava amuado no pet shop, de gravata azul e

contrariado. Saí de lá o mais rápido que consegui com os meus chinelinhos laranja e algodão entre os dedos, antes que ela fizesse mais perguntas. 

A Lídia é fofoqueira, ainda não descobri pra quem ela contou mas com certeza ela contou pra alguém, se o rabo espichasse mesmo ela não sentava mais. E outra, a interpretação errada foi toda dela, afinal não dar pistas de que o Pedro é um cachorro não é uma mentira, mentir seria dizer que o Pedro é um homem. As pessoas podem pensar o que elas quiserem, e se elas querem pensar que eu segui em frente com um partidão chamado Pedro, elas podem pensar isso, se quiserem. 

Eu mesma cometo muitos equívocos, e não poderia, de jeito nenhum, responsabilizar as pessoas pelas coisas estranhas que eu penso. Por exemplo, agora mesmo, acho que o Roberto está pensando na Kendra. Ela anda de motocicleta com ele. Não digo isso porque eu acho que ela anda, digo porque eu mesma vi. Todo domingo ele passa na frente de casa cantando pneu. Ficaria feliz se achasse que ele faz isso pra chamar minha atenção, mas a verdade é que ele é um cara sem criatividade e não deve conhecer muitas outras ruas. Deve estar acostumado com essa rua que ele visitou por vinte anos. Além do mais, os dois não moram muito longe daqui, compraram uma casa parecida com a nossa, de telhado triangular e cerca bege. 

Sei que eles moram lá porque já vi a motocicleta do Roberto estacionada na garagem. Na verdade, agora talvez eu já possa te contar, sei que eles moram lá porque eu vou visitar o Roberto às terças quando a Kendra vai na aula de zumba, e aí a gente tem uma horinha pra lembrar dos velhos tempos. Faço isso só pra mostrar pro Roberto o que foi que ele perdeu porque a performance nem é lá essas coisas, e volto toda semana pro caso dele se esquecer.

* Este conto foi produzido a partir de exercícios do Laboratório de contos, ministrado em 2023 pelas professoras Julie Fank e Luci Collin.